Ouvidos de Outra Mente
Lucas Fernandes é um jovem solteiro de 26 anos que mora sozinho em um apartamento no centro da cidade. Com seus cabelos castanhos e levemente bagunçados, olhos claros que transmitem um ar de mistério e cansaço, ele é do tipo que passa despercebido em meio à multidão - o que ele até prefere, você vai descobrir logo o porquê. Fã de bandas de rock alternativo, está sempre com seus fones de ouvido nas bandas dos anos 90. Seus gostos alimentares não são saudáveis e nem um pouco naturais, prefere fast food, especificamente pizza e hambúrgueres. Adora jogar videogame e assistir séries de ficção científica.
Manhã de segunda-feira, 6:20, Lucas acorda com um som do despertador que irrita qualquer pessoa. Ainda com seus olhos fechados, ele sente latejar a sua cabeça e começa a levantá-la levemente, e sem querer inicia a escutar pensamentos que estão vindo de todos os lados como se fosse um rádio sintonizado em diversas estações, tudo ao mesmo tempo. Dar um suspiro e decide levantar-se da cama, ainda tentando decifrar o que está acontecendo e se preparar para mais um dia caótico em sua vida.
Enquanto caminha em direção a cozinha, ele escuta a voz de sua vizinha de cima Dona Marlene, uma senhora de 70 anos, que está pensando em seu novo animal de estimação, um gato que adotara no dia anterior: "Preciso encontrar um nome para essa bolinha de pelo... talvez Pingo? Ah, mas ele parece mais com um Tobias..." Sem muito entender o que está acontecendo, Lucas revira os olhos, tentando ignorar.
Quando já estava no banho, ele escutou o pensamento do garoto que mora no andar de baixo que dizia: "Será que ela vai responder minha mensagem? Acho que mandei coisa demais, tô ferrado." Por um momento Lucas suspira, tenta desligar essa frequência mental enquanto vai lavando seu rosto, mas aquela inundação de pensamento que não parava.
Caminhando para a cozinha, ele ouve o pensamento do síndico que passava no corredor do prédio entregando um aviso sobre a manutenção do elevador: “Quero só ver se esse povo não vai colaborar esse mês para ser resolvido isso logo!” Lucas murmura sozinho, revirando os olhos: “Só falta essa agora.”
Com o café pronto, ele tenta se sentar para tomar, mas os pensamentos alheios continuam bombardeando sua mente. Cansado, ele suspira e resolve que talvez sair de casa seja o melhor a fazer. Decide então que a primeira parada do dia será o Café Central, onde uma dose de café forte pode, quem sabe, ajudá-lo a limpar a cabeça e ter algum alívio dessa “telepatia descontrolada”.
Lucas entrou no Café Central e pediu um café forte, na esperança de clarear a mente. Escolheu um canto mais afastado, onde pudesse ficar sozinho, mas o incontrolável fluxo de pensamentos alheios já começava a se manifestar ao seu redor, como ruído de fundo em um rádio desajustado.
Ele respira fundo, tentando se concentrar em seu café, quando capta o pensamento de uma senhora sentada perto da janela. Ela parecia concentrada, com o rosto sereno e uma expressão de quem está imersa em cálculos culinários. "Talvez um estrogonofe com arroz e batatas… será que o neto gosta? Ou será que ele prefere algo mais simples? Ah, mas o estrogonofe fica tão saboroso com um toque de creme…"
Antes que pudesse se conter, Lucas suspirou e disse em voz alta: “Acho que ele prefere lasanha.”
A senhora, Cláudia Mello, ergueu os olhos, surpresa. Seus olhos refletiam uma mistura de surpresa e curiosidade, como se estivesse tentando reconhecer o rosto daquele jovem que parecia saber o que ela estava pensando.
"Perdão, mas... nós nos conhecemos?" perguntou ela, com uma expressão desconfiada.
Lucas se atrapalhou, percebendo o que tinha feito. Ele olhou ao redor, tentando encontrar uma desculpa rápida. Segurou o celular e fingiu falar com alguém, forçando um sorriso desajeitado.
“Ah, sim, é… só um segundo, tô aqui no telefone…” Ele fez uma pausa constrangida, fingindo escutar uma resposta imaginária, enquanto a senhora continuava olhando, ainda intrigada.
Assim que ela desviou o olhar, Lucas soltou um suspiro de alívio. Se ao menos eu pudesse desligar essa maldita habilidade, pensou, tentando voltar a atenção para o café. Mas, à sua volta, os pensamentos das pessoas continuavam como um zumbido incessante, e ele sabia que aquele seria apenas o primeiro episódio do dia.
Lucas foi até a Praça da Liberdade, um refúgio verde no meio da cidade, na esperança de encontrar um pouco de paz. Sentou-se em um dos bancos, observando o movimento ao redor – famílias passeando, pessoas fazendo caminhada, alguns estudantes trocando risadas. Ele tentou se concentrar nas árvores balançando ao vento, tentando silenciar os pensamentos invasivos que flutuavam como ecos na sua mente.
Mas logo seu foco foi interrompido. Perto dali, um adolescente de mochila surrada e camiseta de banda, provavelmente saindo da escola, estava sentado com um caderno aberto no colo, mas sua mente parecia em qualquer lugar menos ali. Lucas sentiu os pensamentos do garoto atravessarem como uma onda forte:
"Preciso terminar aquele trabalho de história... mas, cara, o novo episódio saiu hoje! Todo mundo vai assistir antes de mim. Só uma olhada, ninguém vai perceber..."
Lucas, exasperado, sem conseguir mais se conter, deixou escapar em voz alta: “Assiste logo e faz o trabalho depois!”
O garoto, Diego, virou-se imediatamente, os olhos arregalados, encarando Lucas com uma expressão de completo espanto. Ele parecia tão confuso quanto assustado, como se tivesse ouvido um estranho íntimo falando sobre seus segredos.
"Quem é você?" Diego perguntou, sem disfarçar o tom desconfiado.
Lucas congelou, percebendo a situação em que havia se colocado – de novo. Coçou a nuca, tentando pensar em uma desculpa, mas, de alguma forma, palavras não pareciam capazes de tirá-lo daquela situação constrangedora.
"Ah… é que… ouvi alguém falando sobre assistir… um episódio novo... e achei que fosse você,” ele improvisou, dando de ombros e lançando um sorriso forçado.
Diego olhou de canto, ainda desconfiado, mas balançou a cabeça, talvez tentando ignorar. Lucas soltou um suspiro aliviado enquanto o garoto voltava ao seu dilema entre o trabalho de história e o episódio novo.
Um dia vou perder o controle e vou acabar me encrencando de vez com isso, pensou Lucas, com uma pontada de frustração, enquanto tentava relaxar na praça, sem muito sucesso.
Na tentativa de encontrar um pouco de paz, Lucas entrou na pequena livraria do centro da cidade, um de seus lugares preferidos. O aroma dos livros e o ambiente silencioso geralmente o acalmavam, ajudando-o a desviar o foco dos pensamentos que, teimosamente, invadiam sua mente. Ele percorreu as prateleiras distraidamente, olhando para os títulos, tentando relaxar.
Mas, antes que pudesse mergulhar naquele momento de tranquilidade, os pensamentos de uma jovem mulher, parada do outro lado da estante, começaram a atravessar sua mente. Ela parecia absorvida em uma preocupação profissional: "Preciso dessa promoção, mas será que minha estratégia de influenciadores é boa o suficiente? E se parecer artificial? Será que devia apostar mais em algo direto?"
Sem nem perceber, Lucas murmurou, meio distraído: “Tente algo mais autêntico.”
A mulher, Renata, ergueu os olhos imediatamente. Sua expressão era um misto de surpresa e curiosidade, como se tivesse acabado de encontrar alguém que conhecesse um segredo seu. Ela se aproximou devagar, franzindo a testa, e perguntou, meio desconfiada: “Desculpa, você estava falando comigo?”
Lucas percebeu o que havia feito e sentiu o rosto esquentar. Ele balançou a cabeça rapidamente, forçando um sorriso apressado. "Ah, não, não… estava só pensando alto. Você sabe, às vezes a gente fala sozinho," disse, dando uma risada nervosa, enquanto tentava sair de perto.
Renata ainda o observava, intrigada, mas ele se apressou em direção à porta da livraria, antes que ela pudesse fazer mais perguntas. Assim que saiu para a rua, soltou um suspiro pesado, frustrado com o próprio descontrole. Mais uma vez, aquele “dom” incontrolável de ouvir pensamentos estava transformando seus momentos de tranquilidade em situações embaraçosas.
Lucas parou na barraca de frutas na feira, decidido a comprar algumas maçãs para tentar melhorar um pouco sua alimentação – uma tentativa de contrabalançar todo o fast food que costumava consumir. Mas, como sempre, a paz não durou muito.
Ao lado dele, um rapaz franzino segurava uma banana e parecia imerso em uma contagem mental quase obsessiva. Lucas começou a captar os pensamentos de João, que recitava cada caloria em sua cabeça: "Duzentas calorias no café da manhã... mais cinquenta nessa banana... se eu comer isso, talvez deva cortar o lanche da tarde..."
A contagem incessante e neurótica logo começou a irritar Lucas. Ele respirou fundo, tentando se concentrar nas maçãs, mas, exasperado, acabou soltando em voz alta: “Cara, só come a banana!”
João, o rapaz com a banana na mão, parou e olhou para Lucas, espantado. Ele parecia assustado, como se Lucas tivesse de algum jeito lido a sua mente. Sem dizer nada, apenas deu alguns passos para trás, olhando desconfiado, e foi embora rapidamente, ainda segurando a fruta como se fosse uma bomba prestes a explodir.
Lucas suspirou, percebendo que havia cometido mais um deslize. A cada tentativa de ter um dia comum, parecia que sua habilidade descontrolada o empurrava para situações cada vez mais desconfortáveis.
Lucas se afastou um pouco da agitação da cidade e foi até o pequeno parque local, onde costumava tentar meditar para se acalmar. Sentou-se sobre a grama, fechou os olhos e tentou se concentrar em sua respiração, buscando aquele raro momento de silêncio que tanto almejava.
Mas logo, a tranquilidade foi rompida por uma voz interna que não era sua. Ele captou os pensamentos de uma mulher que estava sentada a poucos metros, com um notebook aberto, visivelmente ansiosa. "Será que fiz o relatório corretamente? Preciso revisar tudo... Ah, e o prazo tá apertado..."
A mente de Lucas começou a se agitar à medida que os pensamentos de Beatriz se sobrepunham aos seus próprios. Ele tentou afastá-los, mas a pressão de escutar a preocupação dela só aumentava. Exasperado, Lucas não conseguiu mais se conter e, em voz alta, disse: “Relaxa um pouco, seu relatório tá ótimo!”
Beatriz olhou para ele imediatamente, completamente sem reação. Seu olhar era de confusão, como se tivesse reconhecido alguém, mas não sabia de onde. Ela olhou para Lucas, com a expressão de quem acaba de se deparar com um velho conhecido, tentando encontrar a familiaridade naquele rosto.
“Você… você é… amigo do meu irmão, não?” perguntou Beatriz, com um tom hesitante.
Lucas ficou paralisado por um momento, o rosto se tingindo de vermelho. Ótimo, agora achei que sou alguém da família dela. Ele forçou um sorriso nervoso e balançou a cabeça. “Ah… acho que deve ser algum engano. Desculpa, só falei... err... achei que... você precisava de um conselho. Bem, foi mal!”
Sem saber o que mais dizer, ele se levantou apressadamente e se afastou, com Beatriz ainda olhando para ele, provavelmente tentando entender o que acabara de acontecer. Pelo menos agora ninguém está mais pensando nas calorias de uma banana, pensou Lucas, enquanto rapidamente deixava o parque, se perguntando como poderia evitar essas situações cada vez mais desconfortáveis.
Cansado e mentalmente exausto após outro dia de interferências incontroláveis, Lucas se viu à noite, sozinho em seu quarto, em busca de uma solução definitiva para o caos em sua mente. Ele sabia que precisava fazer algo, ou perderia a sanidade. Pegou o laptop e começou a pesquisar sobre controle mental e telepatia, na esperança de encontrar uma resposta.
Depois de horas navegando por fóruns e artigos, encontrou um site de um mestre espiritual que prometia ensinar técnicas para bloquear ou controlar os pensamentos alheios. O título do artigo era promissor: "Como Silenciar o Mundo e Controlar a Telepatia". O mestre explicava que, com prática constante, era possível desenvolver a habilidade de "fechar" a mente aos pensamentos externos, só acessando-os quando fosse realmente necessário ou desejado.
Determinando-se a tentar, Lucas seguiu as instruções com seriedade. A meditação intensiva parecia ser a chave. O mestre aconselhava que o praticante começasse a se concentrar em sua própria energia, isolando-se mentalmente do que estava ao redor. Lucas sentou-se em seu tapete de yoga, fechou os olhos e começou a respirar profundamente, tentando desacelerar sua mente frenética. O mestre falava sobre visualizar uma bolha ou escudo de luz envolvendo o corpo, protegendo-o de influências externas.
Nos primeiros dias, foi extremamente difícil. Pensamentos alheios ainda invadiam sua mente, mas ele persistiu. Ele foi aprendendo a "fechar" as portas de sua mente para a interferência, focando em manter um estado de silêncio interior. Com o tempo, Lucas começou a sentir uma diferença. Cada vez mais, ele conseguia "silenciar" as vozes dos outros, permitindo que elas desaparecessem em segundo plano enquanto ele se concentrava no que realmente importava.
Após semanas de prática diária, Lucas finalmente alcançou uma sensação de controle. Ele podia, de fato, bloquear a maioria dos pensamentos alheios, acessando-os apenas quando sua curiosidade ou necessidade exigiam. Se alguém perto dele estivesse com um pensamento interessante ou importante, ele poderia "abrir" sua mente para captá-lo, mas sem o constante zumbido mental que antes o atormentava.
Agora, Lucas conseguia viver com a habilidade de uma forma muito mais tranquila. Ele não precisava mais se preocupar com a sobrecarga de informações que invadiam sua mente sem aviso. Usava sua telepatia de forma mais seletiva, para ajudar nas situações em que o entendimento dos outros fosse necessário – como no trabalho ou em conversas com amigos – ou quando queria explorar mais profundamente a mente de alguém que estivesse à sua volta.
Com o tempo, ele até começou a usar seu dom de forma mais ativa e estratégica, em momentos de necessidade ou até mesmo por pura curiosidade. Ele sabia agora como acessar os pensamentos de outros de maneira controlada e focada, mas, o mais importante, ele finalmente havia encontrado paz mental. E, no fim das contas, isso fez toda a diferença.
Nêrilda Lourenço
Enviado por Nêrilda Lourenço em 09/11/2024